CULPA e PERDÃO, uma suave reflexão

Autor:

Dr. Paulo de Mello
Coordenador do GEPECH – Grupo de Estudos e Pesquisa em Comportamento Humano (CEMCO/UNIFESP)

 

CULPA e PERDÃO, uma suave reflexão

 

  1. Existe uma definição clínica ou médica para culpa e ou perdão? Se sim, qual é?

 

R: Existem tantas definições para “culpa e perdão”, quantos são os autores e as construções teóricas que abordam o assunto, mas alguns elementos comuns a maioria das definições, podem ser apontados. A culpa corresponde a um sentimento necessário, desconfortável e limitador sentido por aquele que sente ou entende ter corrompido seus valores pessoais, familiares, sociais e ou religiosos. A culpa pode ser projetada ou introjetada, ou seja, podemos culpar alguém por algo que fez ou deixou de fazer ou podemos culpar à nós mesmos pelas mesmas razões. A culpa responde à frustração fruto de uma expectativa não correpondida por alguém ou por nós mesmos. A culpa também pode ser resultado do sofrimento que sentimos por acreditarmos ter causado algum prejuízo ou estrago intencional ou não intencional à vida de alguém. A culpa é desconfortável pois gera sofrimento, tristeza, ansiedade e insegurança; é limitadora e necessária pois nos ajusta ao convívio social, familiar e profissional. A culpa é um sentimento que nos impede, por exemplo, de seguir com um plano, uma ação ou um comportamento potencialmente danoso à alguém ou à sociedade; por isso se diz que o psicopata sofre da falta da culpa; e sem a culpa, o psicopata não se impõe limites e pouco ou nada se incomodará com o fato de trazer prejuizo à vida de alguém com suas atitudes. Cabe ao Estado e a sociedade definir o que fazer para limitar as ações do cidadão psicopata, visto seu potencial para causar danos imprevisíveis à vida alheia (ex: assassinos em série), ou à sociedade; imaginem um político sociopata, presidente ou 1o ministro de uma grande nação, como ocorreu na Alemanha da 2a Grande Guerra Mundial ou mais recentemente em alguns sofridos países africanos, ou mesmo em países sul ou norte americanos; quanto prejuízo, quanto retrocesso na evolução humana, ecológica e social, não é mesmo? Quanto ao perdão, sua definição é mais complexa, mas vamos entender que no fim, o perdão é mais um auto-perdão que um hetero-perdão, ou seja, de nada adianta o outro não se incomodar ou sofrer com o prejuízo que causamos a sua vida se nós mesmos continuarmos a sofrer por isso. Por isso, pedir perdão à alguém, é fazê-lo saber do nosso arrependimento por algo que fizemos ou deixamos de fazer, nada mais que isso. Já, “pedir” perdão à nós mesmos é fazer sentir que nos arrependemos pelo que fizemos ou não fizemos, é reavaliar profundamente a intencionalidade de nossa atitude, o nosso papel no processo em questão, é compreender que o tempo não volta, que somos passíveis de errar e tudo bem; e que não são todos os estragos que podem ser reparados; é a certeza interior de que numa próxima oportunidade, em situação semelhante, faremos de modo diferente à aquele que fizemos; perdoar é sobretudo, tornar-se capaz de viver o presente e não o passado.

 

  1. É possível determinar quais são os acontecimentos ou situações que normalmente produzem culpa nas pessoas?

 

R: Primeiro, precisamos entender que a culpa é resultado de algo ligado a subjetividade humana, ou seja, é resultado do desenvolvimento de um complexo sistema biológico e psicosocial muito individual. Depende da biologia e integridade do cérebro do indivíduo em questão, tanto quanto da cultura e religião à qual ele é exposto ou se expõe. A sociedade e a religião podem ser elementos importantes na fundamentação do que é moral e ético; por isso, fornecem ao indíviduo os elementos linguísticos e de comportamento que deverão gerar o significado e sentido do que é certo e do que é errado, conforme critérios sociais e ou religiosos. Assim, fazer o que é certo poderá gerar maior aceitação por parte da sociedade, enquanto fazer o que é errado, do ponto de vista social, poderá gerar afastamento desta mesma sociedade, seja de sua cultura, seja familiar ou mesmo religiosa. Então, fazer o que é errado poderá gerar culpa. Já do ponto de vista biológico, devemos entender que “quem” avalia os fatos e os interpreta é o cérebro; e o cérebro funciona com base em reações químicas e bioelétricas, assim, não é difícil entender que a qualidade e eficiência desses mecanismos químicos e bioelétricos, é que vão definir a interpretação que fazemos dos fatos, se estão certos ou errados, se se ajustam ao que a sociedade espera ou não, se se ajustam aos valores que levamos conosco ou não. É o cérebro, sob influência de suas inúmeras experiências, desde muito cedo, que definirá o que pensamos de nós mesmos. Assim a culpa pode surgir como fruto de uma avaliação auto-depreciativa em consequência a um comportamento não apenas reprovável pela sociedade, mas também por nós. Desse modo, não se é possível determinar uma causa geradora de culpa comum a todos indivíduos, já que a culpa surge pela interpretação que o indivíduo faz do contexto e já que essa interpretação depende da formatação de seus circuítos neuronais, resultado de suas experiências pessoais desde a infância, além do que, como já pudemos ver, tais causas, as mesmas interpretadas pelo cérebro do dito indivíduo, são avaliadas de modo diferente por diferentes sociedades em diferentes momentos da história.

 

  1. A culpa e o perdão estão sempre associados à fé ou a moral?

 

R: Não, mas estão sim associados ao modo como o indivíduo interpreta o contexto dentro do que aprendeu ser o correto e o errado. Adendo especial se faz ao perdão; não se perdoa alguém por que é certo ou errado, por que se crê ir para o céu ou ao inferno depois de morto. Ou seja, não se perdoa alguém ou à nós mesmos pelo medo do futuro cruel do inferno; para mim isso chega à beira da caricatura. Perdão nada tem a ver com a fé, mas com o amadurecimento real, verdadeiro e desinteressado. Perdão tem a ver com a evolução do indivíduo como ser, tem a ver com humildade, arrependimento e renúncia, com a capacidade de amar ao próximo e de amar a si mesmo. Perdoar é um ato de bondade, fruto da capacidade de se renunciar à raiva e à culpa; é resultado da capacidade de se aceitar como alguém que tem defeitos, é se aceitar imperfeito e mesmo assim, ser capaz de se amar, não por se sentir melhor que os outros, mas sim, por se sentir e saber ser igual aos outros. Para se perdoar alguém e à nós mesmos, é fundamental ser capaz de “enxergar” o outro, saber quais são suas necessidades, desejos, privações e limitações; é saber respeitá-lo como é, para que possamos nos respeitar como somos.

 

  1. Existe diferença entre culpa e perdão entre os gêneros masculino e feminino? 

 

R: Não pelo fato de alguém ser um homem ou uma mulher, mas sim pelas atribuições que a sociedade e cultura em questão dão ao homem e à mulher. Essas atribuições, em algumas culturas, passam por mudanças fundamentais desde o último século. Sou ainda do tempo em que uma mulher infiel ao marido sofria de um julgamento moral muito maior que aquele dirigido ao marido infiel. É de se pensar, que há 40 anos atrás, no Brasil, a mulher sofresse mais pela culpa da infidelidade que o homem, hoje as coisas estão mudando e por várias razões. Tomemos então como exemplo a infidelidade. Com o avançar dos anos, o movimento feminista, a “queima dos sutiãs”, o direito conquistado ao voto e o bom desempenho da mulher no mercado de trabalho, tem modificado consideravelmente o peso da infidelidade à mulher. Entretanto outra mudança deve ser ressaltada, que afeta homens e mulheres. Ao fim da ditadura, a oscilação política natural de um país que ficou mergulhado no ostracismo por cerca de 20 anos, faz surgir uma sensação natural do final de qualquer ditadura, uma sensação que vamos chamar de “tudo pode”; algo que vem sofrendo ajustes sociais, culturais e políticos desde 1984, no Brasil. Essa força natural de ajuste que ainda  “balança o barco” do que é certo e do que é errado, aumentou a liberdade de se fazer o que se bem entende, por isso essa sensação às vezes justa, de impunidade política, corrupção e de desrespeito ao próximo. Há 30 anos atrás, parece que sabíamos mais o que era certo e o que era errado, não que estávamos certos. Bem, essas mudanças sociais e políticas, além dos ajustes de comportamento num nível mundial, facilitado pela mídia, sobretudo a internet, afrouxou a vida do superego (estrutura figurativa descrita por Freud, relacionado a incorporação das idéias e valores definidores do que é certo e do que é errado), e por esse afrouxamento do sistema de regras introjetados, hoje, tanto homens quanto mulheres, sentem-se naturalmente e igualmente menos culpados, se infiéis.

 

  1. Quais as mudanças comportamentais e física que podem surgir em decorrência das sensações constantes de culpa (em alguém incapaz de perdoar). A somatização pode ser um efeito colateral da culpa?

 

R: Há de se diferenciar a verdadeira culpa da falsa culpa. A verdadeira culpa é aquela pela qual nos sentimos responsáveis por trazer algum estrago à vida de alguém. Neste caso, a incapacidade de elaboração da culpa, ou seja, da restauração ou mesmo da reparação, pode resultar no que chamamos de defesa maníaca, ou seja, o indivíduo passa a negar a responsabilidade pelo dano que causou, por ser esta responsabilidade insuportável e desvaloriza aquele cuja vida estragou, projetando nele a responsabilidade pelo estrago. É uma forma de fechar os olhos para a verdade com o objetivo de se auto-tolerar. Neste caso gera em si mesmo a tristeza, raiva, indignação, desdém entre outros sintomas emóticos, como causa da culpa insuportável. Caso isso não funcione, o suicídio real, aparece como saída, mesmo que não o seja. Concluindo, algumas vezes opta-se por findar a vida de forma ativa, com o objetivo de não mais causar estragos à vida das pessoas que amamos. Afirmamos que esta culpa, a culpa verdadeira, é a mais rara entre todas as culpas (cerca de 8%). Podemos ainda entender que há 2 formas de se sentir culpado, uma, envolve um contato pouco claro do indivíduo com a culpa que sente, ele não consegue discriminar o que sente, mas sente. Sente-se inseguro, tem medo de ser morto, não de morrer, mas de ser morto, é desconfiado, desenvolve rituais para manter-se seguro, prefere viver sozinho e evita, de um modo geral, contatos sociais. Sente raiva com frequência e busca ser reconhecido como alguém bondoso, justo e competente. Esta é a forma que este tipo de indivíduo encontra para lidar com a culpa que nem sabe que sente (cerca de 20%). Outro tipo de indivíduo é aquele que se sente culpado por algo que fez, mas não por que causou um estrago a vida de alguém, mas sim, por que perdeu algo importante para si. É fato que esse tipo de culpa acomete a maioria das pessoas (cerca de 72%). Desenvolve-se o perfil melancólico, a mágoa e as doenças psicossomáticas. Assim, essa culpa, uma falsa culpa, pois é mais uma mágoa, pode ser um dentre tantos gatilhos (biológicos, ambientais e psicológicos), para o desenvolvimento de uma doença psicossomática. O grande desejo desse grupo de pessoas é o de ser amado, cuidado e protegido.

 

  1. É possível que a culpa se transforme em algum tipo de patologia? Qual? Existe algum estudo que tenha associado culpa ou perdão ao surgimento de doenças?

 

R: Quando essa culpa acompanha a mágoa, vemos com alguma frequência o desenvolvimento de doenças psicossomáticas em pessoas geneticamente predispostas. Estuda-se a possibilidade de que a culpa possa ser, em alguns casos, gatilho para alguns tipos de câncer. A matéria que desenvolve tais estudos é a psiconeuroimunologia e inúmeros trabalhos, há mais de 20 anos, apontam para esta relação. Apontam a depressão e a culpa como mais uma provável variável a favor do desenvolvimento do câncer, tal qual o estresse, o tabagismo, o alcoolismo entre outras variáveis.

 

  1. Qual é a melhor maneira de lidar com a culpa para que ela não produza efeitos negativos?

 

R: Essa resposta é difícil, pois cada indivíduo, como a própria nômina diz, é um indivíduo. Teve suas experiências de vida que ajudaram a moldar seu cérebro e capacitá-lo, dentro de seu potencial genético, a reagir de um ou de outro modo às situações conflituosas e frustrantes. Desse modo, acredito que a melhor maneira de lidar com a culpa para que ela não produza efeitos negativos em sua vida é capacitar seu cérebro de modo que você possa desenvolver uma maneira mais positiva de perceber os fatos e de reagir à eles. Conheço dois modos de fazê-lo, corrigindo o metabolismo e a bioquímica cerebral por meio de medicações ou estimulação magnética transcraniana (TMS), responsavelmente prescritos por profissionais capacitados e certificados para isso, o que colocará o cérebro em melhores condições de lidar com conflitos e frustrações, fundamental para a prevenção do suicídio em alguns casos; e por meio do desenvolvimento mental, social e psicológico proporcionado por uma boa psicoterapia, também desenvolvida por profissionais capacitados e certificados. Sem dúvida, o acolhimento social e familiar, pode em muito auxiliar o indivíduo na solução da culpa de um modo mais confortável e rápido.

 

  1. Como identificar que a dificuldade em perdoar se transformou num problema?

 

R: Até aqui, conheço menos de uma dúzia de pessoas com plena capacidade de perdoar, e tenho 32 anos de experiência profissional na área. Vejo que não perdoar é “sempre” um problema, pois gera sofrimento ao indivíduo e a sua família. Algumas vezes põe em risco o seu emprego, e sem dúvida, não perdoar destrói a possibilidade de se ser feliz. Algumas pessoas não querem perdoar, apesar de reconhecerem a relação entre seu sofrimento e a falta do perdão, mas optam por continuar odiando aquele que julga ser culpado, mesmo que este alguém seja ele mesmo. Perdoar é renunciar à raiva que se sente de si mesmo e em consequência, renunciar à raiva que se sente de alguém, é aceitar a inevitabilidade de uma situação, é ser bom, inteligente e saudável.

 

Dr. Paulo de Mello
Médico Neurologista Clínico pela Escola Paulista de Medicina – UNIFESP
Especialista em Medicina Comportamental pela UNIFESP
Psicanalista neo-kleiniano e Mestre em Psicologia da Saúde pela UMESP
Coordenador do GEPECH – Grupo de Estudos e Pesquisa em Comportamento Humano (CEMCO/UNIFESP)

 

  

By |2019-07-29T16:10:16-03:00julho 29th, 2019|Neurociência aplicada à Psicanálise|0 Comments

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